Introdução
Como o serviço ao próximo está relacionado à nossa vocação
cristã? Nossa dedicação ao serviço ao próximo não seria perda de tempo,
recursos e energia? As pessoas não estão carentes é da graça da salvação?
Cuidar dos cidadãos não é responsabilidade das autoridades competentes? Não nos
diz a Palavra de Deus que nós teríamos sempre os pobres conosco? A igreja não
deveria se dedicar, no máximo, ao auxílio dos irmãos na fé somente? Ela não
perderia o seu foco se começasse a se dedicar também a servir às outras pessoas
em suas carências? Perguntas como estas podem se multiplicar até que,
intimidados pelo risco que o serviço ao próximo pode trazer, cheguemos à
conclusão prática da inviabilidade do envolvimento da igreja com algum tipo de
responsabilidade de serviço ao nosso próximo. Contudo, a pergunta que devemos
corajosa e humildemente fazer é: o que a Palavra de Deus diz sobre o serviço
que a igreja deve prestar ao próximo?
I. A vocação serviçal
da igreja
O texto que serve de base para este estudo é profundamente
tocante porque nos apresenta uma grandiosa lição de humildade da parte do nosso
Senhor Jesus. Sendo quem era, o glorioso e eterno Filho de Deus, Cristo humilhou-se
a ponto de exercer um serviço próprio de um escravo, que era o de lavar os pés
do seu senhor. Com tão eloquente lição dada na mesma noite em que seria traído
e entregue para ser crucificado, o Filho de Deus nos deu o exemplo da atitude
espiritual que deve nortear e acompanhar a atuação da sua igreja na sua relação
com o mundo (Fp 2.3,5). O gesto de Jesus segue na contramão do entendimento de
grandeza e honra conhecido pelo presente século (Mt 20.25-28), pois a
humilhação de Cristo ocorreu voluntariamente para a redenção do seu povo (Mt
1.21; Jo 10.11,17). Embora rejeitado pelo antigo povo da aliança, Cristo trouxe
a adoção espiritual para todos quantos creram na sua obra, segundo a vontade de
Deus Pai (Jo 1.11-13).
a) Observando o
exemplo de Cristo
O exemplo dado por Jesus diz respeito, primeira e
diretamente, ao serviço humilde que os cristãos devem prestar uns aos outros,
não limitando a própria ação serviçal pela posição que alguém, porventura,
venha a ocupar na igreja. Se Cristo, que é a própria glória de Deus manifesta
aos homens (Jo 1.18), submeteu-se até à morte para reconciliar consigo mesmo
todas as coisas (Cl 1.18-20), os seus seguidores não deveriam se omitir. Essa
mesma atitude serviçal indica a postura própria e adequada de todos os que se
tornaram discípulos de Cristo (Mt 20.25-27), ainda que estejam servindo a
outros cristãos, como nos indica o texto de João 13.10,11. Em seguida, o Senhor
Jesus expressa aberta e claramente que seu exemplo deveria ser praticado pelos
seus seguidores e não apenas entendido, uma vez que ele, sendo Senhor e Mestre,
corretamente identificado pelos seus discípulos, lhes havia lavado os pés.
Assim Jesus demonstra a necessidade de serviço humilde e sincero com relação
aos outros, pois a bênção consiste exatamente em ser usado como instrumento nas
mãos de Deus para servir ao próximo. Esse serviço evidenciaria quem
verdadeiramente foi escolhido por Cristo, mesmo porque Paulo diz que o trabalho
decorrente da fé confirma a nossa vocação e eleição (1Ts 1.3,4).
b) Entendendo a
vocação serviçal da igreja
O serviço ao próximo, portanto, deve acompanhar a igreja de
Deus como um testemunho concreto de uma vida que foi resgatada do egoísmo
pecaminoso terreno e carnal, reinante no coração do homem não regenerado (Fp
3.19), para uma vida voltada para Deus e o próximo (Lc 10.26-28). Começando
pelos da família da fé (Gl 6.10), ou seja, os nossos irmãos em Cristo, a igreja
tem um papel importante para desempenhar na sociedade e o fará quando unir o
seu discurso sobre o amor à prática do serviço ao próximo.
A palavra serviço (ministério; Rm 12.7) aparece 34 vezes no
Novo Testamento, sendo usada principalmente por Paulo para descrever um serviço
amoroso, atitudes concretas que expressem o amor ao próximo, tanto aos
cristãos, quanto aos incrédulos. Essa palavra indica literalmente o “serviço à
mesa” apontando para a ideia de um serviçal assistindo ao seu senhor, o que
exige humildade, mas também expressa a grata satisfação de servirmos livre e
espontaneamente a quem amamos e somos gratos (Mc 1.30,31). Contudo, o aspecto
mais impactante é quando esse serviço é uma demonstração legítima da nova vida
que temos em Cristo Jesus (2Co 5.17), a qual nos capacita a servir também a
quem não é nosso irmão em Cristo, inclusive aqueles que, porventura, tenham nos
prejudicado (Mt 5.39-44). Tais atos de serviço, ainda que possam não ser
legitimamente expressões de amor cristão (1Co 13.3), comumente são poderosos
testemunhos da nossa vida cristã (Rm 12.18-20).
As cidades são centros populacionais onde as pessoas estão
praticamente amontoadas. São tantas as carências e tantas as diferenças que,
estando nós tão próximos da miséria humana, podemos chegar ao ponto de nos
acostumar com as cenas degradantes que revelam quão baixos são os níveis aos quais
podem chegar os seres humanos. Isso não apenas por suas irresponsabilidades ou
escolhas erradas na vida, mas também pela falta de acesso às condições mínimas
de sobrevivência ou meios que lhes ofereçam condições de sair desse estado de
miséria. Percebemos então que o serviço ao próximo há de ser um poderoso
instrumento divino, não apenas para ajudá-los a suprir as suas carências, mas
também para dar respaldo à mensagem sobre o misericordioso amor de Deus que
devemos anunciar a esses cidadãos perdidos.
II. A igreja servindo vocacionalmente
O serviço cristão deve ser desempenhado porque é tanto uma
obediência à ordem bíblica, como uma expressão legítima da nossa vocação
cristã. Sendo assim, quando um cristão age em prol do seu próximo, ele o faz
não simplesmente para auxiliar o necessitado ou movido pela compaixão diante da
sua dor e miséria, nem como uma simples estratégia para o que verdadeiramente
interessa, que é salvar a alma do pecador. O próprio Filho de Deus, que
conhecia o coração do homem, manifestou a sua graça servindo a quem ele sabia
que não responderia com fé e gratidão (Lc 17.17); contudo, o seu serviço não
estava exclusivamente ligado à conversão espiritual daqueles aos quais ajudava.
Ele chegou até a usar tal rejeição às suas obras messiânicas para ressaltar a
responsabilidade dos beneficiados (Jo 10.24-26; Mt 11.21).
O serviço amoroso não levará todos os beneficiados à fé
salvadora, entretanto há virtude no serviço cristão em si mesmo, ainda que
devamos fazê-lo também com o propósito último de resgatar para Cristo aqueles
aos quais estamos servindo, por sabermos do grande júbilo celestial que ocorre
quando um pecador se converte a Deus (Lc 15.7). Do mesmo modo como as obras de
Cristo não produziram a fé em todos os beneficiados, mas apenas em alguns que
creram e foram salvos, como o leproso samaritano (Lc 17.17-19) ou alguns dos
judeus que viram e ouviram a Cristo (Jo 10.26-32,37-42), assim também devemos
servir ao nosso próximo, deixando com Deus o atrair a si aqueles que ele
quiser.
O serviço cristão não deve ser interpretado nem executado
como mero assistencialismo; antes, deve servir de testemunho do amor real que
devemos expressar para com o nosso próximo como fruto e evidência sincera de
uma vida alcançada para servir aos outros. Para isso, é preciso que conheçamos
o nosso próximo, saibamos quais são as suas reais necessidades, onde mora, como
é o seu dia a dia, quais são as suas lutas particulares e os seus anseios
específicos. O auxílio espiritual que a igreja dá ao pecador, ao apresentar-lhe
a oferta de perdão e salvação que o evangelho faz, torna-se mais eloquente
quando é exercida por pessoas que já haviam demonstrado sensibilidade para
servi-lo procurando suprir as suas necessidades básicas.
O primeiro passo em direção a esse serviço é estabelecer
contato com as pessoas, pois como podemos servir alguém a quem não conhecemos,
visto que o serviço cristão não é mero assistencialismo? Por isso mesmo, não é
razoável que o serviço cristão seja realizado impessoalmente; é preciso que nos
envolvamos com aqueles aos quais vamos demonstrar o amor de Deus. Cristo fez
assim ao assumir a nossa humanidade e ao viver entre nós, como um de nós, numa
aproximação verdadeira de serviço (Fp 2.6-8). Ele chegou ao ponto de entregar a
sua própria vida por nós, o que é a única esperança para a salvação dos
pecadores, pois a entrega de Cristo foi o sacrifício único e perfeito,
oferecido a Deus para nos conduzir ao Pai (1Pe 3.18). Precisamos estar
preparados para essa aproximação, visto que haveremos de deparar com situações
difíceis. Nos grandes centros urbanos do nosso país, as áreas de maior carência
estrutural, como as favelas, também são as de maior desestruturação social. São
lugares onde as pessoas convivem muito perto com a absoluta falta de uma condição
mínima para se viver uma vida digna. Estamos preparados para servir ao próximo
necessitado do nosso amor? Estamos prontos para conhecer pessoalmente a sua
vida com todas as suas necessidades? Seremos capazes de lhes falar sobre um
Deus de amor e justiça, enquanto eles vivem em circunstâncias tão adversas?
Estamos preparados para isso?
Conclusão
Os grandes centros urbanos, além de serem polos de atração
para muita gente carente de renda para manter dignamente a sua família, também
é palco por onde desfilam muitas pessoas que precisam de voluntários de uma
expressão concreta de misericórdia. Elas necessitam de um pouco de atenção e
empenho por parte de parte de alguém que as ajudem a se desenvolver nesta vida
e a resgatar a sua dignidade humana, restaurando nelas a imagem de Deus
maculada pelo pecado. O modelo desafiador que a Palavra de Deus nos apresenta
não é apenas importante estrategicamente, mas é coerente tanto com o exemplo de
Cristo quanto com a vocação que ele nos deu.
Aplicação
Conheça as pessoas que vivem próximas de você e saiba quais
são as suas necessidades reais. Pense em como auxiliá-las, não apenas lhes
prestando socorro, mas ajudando-as a superar as suas carências. Elabore um
projeto viável para que sua igreja leve simultaneamente o evangelho e auxílio
de forma a suprir as necessidades mais básicas das pessoas carentes. Você está
pronto para ser um instrumento para aliviar o sofrimento delas?
Estudo publicado originalmente na revista Palavra
Viva
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