O cristianismo evangélico é caracterizado pela vontade de
ser radicalmente “bíblico”. Mas ser bíblico é um “desafio”, uma aspiração
permanente, e nunca uma conquista ou posse nossa. É um horizonte que está
sempre à nossa frente, como indivíduos e como igrejas. É um desafio com “muitas
dimensões”, algumas das quais menciono aqui.
Ser bíblico significa reconhecer a amplitude da Bíblia
A Bíblia é como um país grande, que não se pode conhecer
numa rápida visita de turista. E como todo país grande, tem regiões muito
diferentes entre si -- umas mais determinantes do que outras.
Ser bíblico significa ser cristocêntrico na interpretação e
no uso
Desde a igreja primitiva, lê-se a Bíblia toda por meio de
Cristo. Ele é o centro, a chave interpretativa. Isso significa, entre outras
coisas, que devemos ter cuidado para evitar a bibliolatria. O cristianismo é
diferente do outro grande monoteísmo, o islamismo. O equivalente da Bíblia no
islamismo não é o Alcorão, mas sim o profeta Maomé; e o equivalente do Alcorão
é Cristo. No islamismo, vai-se ao Alcorão por meio de Maomé, mas no
cristianismo vai-se a Cristo por meio da Bíblia. O propósito da Bíblia é
levar-nos a Cristo, o Verbo de Deus. A bibliolatria é o desvio dos cristãos que
se esqueceram da encarnação de Deus em Cristo. No cristianismo, o ápice da
revelação de Deus não é um livro, mas uma pessoa.
Ser bíblico significa enamorar-se da estória bíblica e nela
situar-se
Usei de propósito a palavra “estória”, não para negar a
natureza “histórica” da revelação cristã, mas para enfatizar a natureza “novelesca”,
ou seja, a fé cristã nos oferece uma estória com a qual podemos nos entusiasmar
e nos identificar. Uma das funções de todo culto cristão é a lembrança dessa
estória e o convite para nos situarmos novamente dentro dela, vivermos a nossa
pequena estória à luz dessa estória maior. Como diz C. S. Lewis, “Para ser
realmente cristãos, temos que não apenas concordar com o fato histórico, mas
também abraçar o mito com o poder da imaginação”. O cristianismo tem a melhor
estória do mundo, a melhor trama, a de um Deus que não apenas cria o mundo, mas
entra pessoalmente nele; que não apenas entra no mundo, mas nasce como bebê e
passa pelas fases normais de desenvolvimento; que não apenas vive, mas vive
anonimamente, como pessoa pobre num país oprimido; que não apenas vive num país
oprimido, mas é incompreendido e rejeitado por boa parte do seu próprio povo;
que não apenas sofre, mas morre; que não apenas morre, mas morre de forma
agonizante e indigna; e que não apenas se submete à morte, mas vence-a pela
ressurreição. Mesmo que não fosse verdade, essa seria uma estória digna de ser
“abraçada com o poder da imaginação”.
Ser bíblico significa imergir-se na cosmovisão bíblica
A Bíblia nos dá uma visão de mundo, um par de óculos através
dos quais enxergamos a vida inteira. Um dos propósitos do contato regular com a
Bíblia é o de nos saturar na visão bíblica do mundo, de aprender a “cultura” do
reino de Deus. Assim como a pessoa que vai morar num país estrangeiro, nós
precisamos aprender a cultura do reino, precisamos adaptar-nos a suas
prioridades e seus valores. Tanto quanto aprender, isso envolve desaprender,
pois Jesus inverte os valores do mundo e nos oferece um mundo impregnado de
outros valores.
Ser bíblico significa ler a Bíblia em comunhão com a igreja
de todos os tempos
Não podemos ser bíblicos sozinhos. Temos que ler a Bíblia na
comunhão dos santos, que não apenas é local e contextualizada na nossa
realidade, mas também é geográfica e historicamente dispersa. Devemos ler a
Bíblia por meio dos melhores intérpretes, mesmo que estejam do outro lado do
mundo ou tenham morrido há muitos séculos -- mas ainda nos falam por meio de
seus escritos.
Ser bíblico significa entender a liberdade evangélica
Se ser evangélico é a vontade de ser bíblico, isso nos dá
uma nova liberdade. A liberdade de não ter que defender determinadas tradições
e execrar outras. A liberdade de examinar todas as tradições, avaliando-as
pelos critérios da revelação e da relevância.
Ser bíblico significa ser calibrado nas ênfases
Devemos ser bíblicos também no peso que cada assunto tem na
Bíblia. Quem é bíblico sabe dimensionar as questões e não exagera os temas
secundários. Um pregador que fala 50% do tempo sobre um assunto que representa
0,05% da Bíblia não está sendo bíblico.
Ser bíblico significa cultivar o desejo santo do
conhecimento
Como disse João Cassiano, no século 5º, “Enquanto há tempo,
acenda dentro de si o lampião do conhecimento. Preserve aquele desejo da
leitura que você tem, e se apresse a adquirir o conhecimento moral”.
Ser bíblico significa ser persistente
Nas palavras de Efrém, o Sírio (século 4º): No estudo de um
texto bíblico, “quem encontrar um dos seus tesouros não deve pensar que ali
existe somente aquilo que encontrou, mas antes, que ele foi capaz de encontrar
somente aquilo. Dê graças pelo que você conseguiu tirar, e lembre-se que o que
ficou também faz parte da sua herança. Por causa da sua fraqueza, você não foi
capaz de receber tudo de uma vez, mas procure recebê-lo em outro momento, não
desista”. A Bíblia é um poço inesgotável, mesmo para quem a estuda em
profundidade há muitas décadas.
Ser bíblico significa ser humilde
Para João Cassiano, “é totalmente impossível que alguém que
se dedica ao estudo das Escrituras somente para ganhar o elogio humano receba
de fato o dom do conhecimento espiritual. Pois, nesse caso, ele estará
aprisionado por outros vícios, sobretudo o orgulho. Se você deseja alcançar o
verdadeiro conhecimento das Escrituras, deve apressar-se em alcançar a
humildade do coração”. Ou, nas palavras de Walter Hilton (século 14): “Na
Escritura Sagrada, Deus, que é a Verdade, se esconde sob o manto precioso da
bela linguagem. Pois a Verdade somente se revela aos amigos que a amam e buscam
com um coração humilde. Pois a verdade e a humildade são verdadeiras irmãs”.
Ser bíblico significa reconhecer a diversidade do corpo de
Cristo
Diversidade, em vários sentidos. Primeiro, nos níveis em que
a Bíblia funciona: psicológico, emocional, relacional, social, político,
intelectual etc. Em segundo lugar, na diversidade das pessoas que leem a
Bíblia: de diversos temperamentos, diversos níveis educacionais, diversas
situações sociais, diversos momentos da vida. Mas a Bíblia é capaz de falar a
todos. Como diz uma famosa frase, é como “uma poça d’água em que uma criança
pode brincar, e um lago profundo em que um elefante pode nadar”. E, em terceiro
lugar, nas diversas perspectivas contidas na própria Bíblia. Como diz novamente
Efrém, “Quem é capaz de compreender as imensas possibilidades de cada uma de
suas declarações? Deixamos para trás muito mais do que levamos. Muitas são as
perspectivas de sua Palavra, como também muitas são as perspectivas daqueles
que a estudam. Deus escondeu na sua Palavra todo tipo de tesouro, para que cada
um de nós, toda vez que meditamos, seja enriquecido”.
Ser bíblico significa ser generoso
O nosso compromisso é com a expansão da religião bíblica,
não com uma determinada instituição ou rótulo. Devemos aplaudir tudo o que for
bíblico, onde quer que se encontre, inclusive entre não cristãos, não tendo
medo de afirmar o que há de positivo em outras religiões, filosofias ou
ideologias.
A recompensa: a formação da alma
Nas palavras de Cassiano: “Dedique-se à leitura sagrada para
que a meditação contínua penetre a sua alma e a amolde à sua imagem”.
* Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor
colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal
de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global
na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University,
em Waterloo, Ontário, Canadá. Freston é autor de Religião e Política, sim;
Igreja e Estado, não e Nem Monge, Nem Executivo.
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