Cardoso era um jovem diferente. Converteu-se a Cristo lendo
a Bíblia. E, de tanto lê-la, foi adquirindo bons hábitos e deixando a velha
vida. Converteu-se do jeito bíblico: arrependeu-se dos pecados, creu em Jesus
como Salvador e seguiu-O vida afora. Foi batizado e passou a pregar o
evangelho.
Não tardou para que a igreja e o seu pastor identificassem
nele um chamado especial para o ministério pastoral. Após terminar o ensino
obrigatório, foi encaminhado ao seminário teológico. Trabalhava durante o dia e
estudava à noite. Deslumbrou-se com a biblioteca da faculdade; animou-se com os
figurões teológicos que ensinavam as matérias. Mas, pouco a pouco, descobriu-se
como uma gota de óleo no meio d'água.
Seus colegas não criam como ele. Eram, em sua maioria,
crentes sem compromisso. Bebiam e embriagavam-se. Alguns fumavam e usavam
maconha. Namoravam com fornicação. Os professores, por sua vez, apostavam no
amor de Deus acima dos preconceitos humanos. Pecado deixou de ser uma agressão
a Deus e à Sua Lei e tornou-se livre escolha, multiforme expressão de vida
cristã e razão para nos aceitarmos mutuamente. Cardoso ouvia de seus mestres,
doutores em várias áreas, defenderem uma vida cristã livre de preconceitos.
Assustou-se. Tomou sua bíblia, já surrada de tanto usada, e abraçou-se a ela,
dizendo: "Nem que o maior doutor diga o contrário eu não deixarei a
Palavra de Deus. Não preciso de teorias; já tenho a verdade!" E seguiu seu
curso, sempre considerado um quadrado, um sectário, mas brilhante na vida e nos
conceitos.
Foi ordenado ao ministério pastoral. Assumiu uma igreja. E
como festejou a oportunidade de servir ao Senhor no ministério! Passou a visitar,
a pregar, a ensinar, a aconselhar, a evangelizar. Aos poucos a igreja foi
adaptando-se a ele. Costumava ler a sua bíblia longamente e nos aconselhamentos
não tardava em evocar os exemplos bíblicos para o conforto dos fiéis. A igreja
o denominava "pastor bíblico", "como se fosse possível pastorear
de outro jeito", pensava ele.
Surgiram os problemas na igreja. Casais não casados
fornicavam. Casais casados adulteravam. Crentes manifestavam pecados e
escravidões terríveis: cigarro, pornografia, maledicência, fofoca, amarguras de
décadas etc. Cardoso não titubeava: usava o seu púlpito para proclamar o
"assim diz o Senhor". Muitos membros o respeitavam por isso; outros,
conquanto compreendessem a sua postura, não admitiam que fosse alguém tão "viciado"
em Bíblia, uma vez que as igrejas próximas agiam diferentemente dele: algumas
igrejas aceitavam a fornicação como "experiências para ver se havia
compatibilidade"; aceitavam o adultério como "forma de provar que o
amor maior estava em casa"; entendiam a pornografia como "estímulo
para novas experiências conjugais"; consideravam o uso de cigarro e bebida
como "livre arbítrio e possibilidade de mostrar que o domínio próprio não
os deixaria ir aos extremos". Cardoso não só rejeitava a todas essas
teorias, como pregava com poder e autoridade espirituais a mensagem bíblica,
proclamando que "os que semeiam na carne, da carne colherão a
corrupção" e que "os que estão na carne não podem agradar a
Deus".
Cardoso passou a colecionar inimigos do clero. Não do clero
católico, mas do clero de sua denominiação, os ministros, pastores e membros de
escritórios denominacionais. Para ele a Bíblia deveria nortear os passos das
igrejas, da conduta dos crentes, do ensino dos pais aos filhos, e também dos
negócios eclesiásticos, da administração financeira e da observância da lei.
Infelizmente Cardoso, já com seus 20 anos de ministério, contemplava
tristemente um mundo de ministros que não seguiam a sua amada Bíblia. A
denominação recolhia ofertas para missões e as usava para prover viagens
nababescas aos administradores, privando os missionários dos recursos. As
igrejas cresciam fortemente, fazendo vistas grossas ao pecado, transformando-se
em inclusivas, não dos convertidos a Cristo, mas dos sem Cristo e cheios do
pecado; o dinheiro entrava na mesma proporção em que Cristo saía. Muitos
encaravam as igrejas como negócio, fonte de renda e curral eleitoral; não foi
sem motivo que vários colegas de Cardoso se transformaram em políticos
conhecidos. Infelizmente a conivência tornou-se conveniente e a Bíblia
tornou-se pretexto.
Cardoso chorava e sofria. Era acusado de dentro da igreja
como radical e pelos colegas de puritano e fundamentalista. Contudo, quanto
mais o acusavam, mais lia a sua Bíblia e mais forças recebia da parte do Senhor
para manter-se firme e constante, não olhando nem para a direita e nem para a
esquerda. A teologia para ele era ferramenta, adequada em alguns casos e
dispensável em outros; a Bíblia não. Pregava com a mesma simplicidade e a mesma
fé. Ao completar 35 anos de ministério foi homenageado pela igreja como
"um pastor que ama a sua Bíblia".
A idade chegava. A saúde debilitava-se. Cardoso já contava
com 50 anos de ministério. Nunca se tornou célebre na denominação. Jamais foi
cotado para alguma coisa expressiva. Era um pastor de igreja local, modesto,
humilde, simples. Mas conduziu a igreja do Senhor aos caminhos da Bíblia
Sagrada e cuidou de seus filhos e netos enquanto pôde. Batizou centenas,
apresentou os filhos deles; celebrou os quinze anos das meninas e casou outras
centenas de jovens. Apresentou seus filhos também. Estava a batizar a terceira
geração e acompanhava os seus velhos membros até a hora derradeira. Conhecia a
cada um deles e jamais desviara-se nem para a direita e nem para a esquerda.
Num mundo evangélico de tantas mudanças e com tantas banalidades, Cardoso
manteve a igreja que pastoreou como um oásis no meio do deserto, num púlpito de
mensagem fresca como a água da vida e supriu a cada dia o pão da vida da
pregação do evangelho. Era uma igreja á moda antiga.
Sem poder caminhar com destreza e sentindo os 87 anos a
pesar, Cardoso enxergava muito mal. Mas usou da tecnologia para ouvir a bíblia
gravada. Era a sua audição preferida. Os seus netos juntavam-se aos seus pés,
junto com os amiguinhos, para ouvi-lo contar as histórias que permearam a sua
própria biografia: ele contava as histórias bíblicas. Enquanto podia falar,
falou. Enquanto podia ouvir, ouviu. Enquanto podia comunicar-se, testemunhou.
Dois meses antes de partir, sua fala parou. Então escrevia.
E dizia nas frases: "eu amo a Palavra de Deus"; "não nos
afastemos das Escrituras Sagradas"; "Eu sei em quem tenho
crido"; "descansarei no Senhor, mas ressuscitarei";
"recebe-me, Senhor, em Teu Reino!".
Naquela manhã fria de junho Cardoso não despertou. Dormira
no Senhor. Sua família, grata pela vida monumental desse herói da fé, fez um
culto no quarto ainda quente, agradecendo a Deus por vida tão dedicada à
mensagem do Senhor e à fidelidade bíblica. O culto da saudade, na igreja,
trouxe três milhares de pessoas. Não desfilaram os hipócritas de sempre pelo
púlpito fúnebre; Cardoso deixou escrito que não queria nada disso. O culto era
para Deus e só para Ele. Ao invés disso, leram textos que falavam do amor de
Deus, da morte e da ressurreição, e cantaram hinos que sintetizavam a fé de
Cardoso: "HEI DE VER MEU REDENTOR"; "CIDADE SANTA";
"JÁ REFULGE A GLÓRIA ETERNA"; "DA LINDA PÁTRIA"; "OH,
QUANDO O MOMENTO CHEGAR".
Ao pé da sepultura todos choraram. Sentiam saudade do velho
pastor que fizera da Bíblia a sua espada de dois gumes. Sentiriam falta dos
sermões poderosos e sem temor, denunciadores do pecado e apontadores do perdão.
Sentiriam falta da intransigência cristã de quem vivia o que pregava. Sentiam-se
órfãos, absolutamente solitários num universo tão desprovido de praticadores da
Palavra de Deus. "quem continuará o seu ministério?"
Ao pé da sepultura outro Cardoso, o Júnior, neto caçula do
Pastor Cardoso, disse: "Senhor, eu seguirei a senda do vovô. Dá-me a Tua
bênção". E naquele instante outro Cardoso recebia a "capa de
Elias".
Pr. Wagner Antônio de Araújo
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